Perdoem-me a analogia um pouco ousada e lúgubre desta minha crónica, mas, pelo que tem de insólita e hilariante, não consegui deixá-la de burilar neste espaço de opinião.
São raras as vezes que recorro às carreiras urbanas para me deslocar na cidade; não fora anteontem lá por volta do meio-dia, num autocarro apinhado de gente que dei conta de um diálogo entre dois provectos idosos e que me perpassou nas memórias do tempo.
Debatia-se a qualidade atual da cromagem dos para-choques dos carros. Melhor dizendo, dos para-choques do Volkswagen “carocha” pertencente a um dos sublimes dialogantes.
Reclamava aquele que, há três meses, tinha mandado cromar os para-choques numa tal empresa especializada, que lhe tinha custado uma pequena fortuna e que já começavam a aparecer sinais de ferrugem. “A cromagem já não se faz como dantes…”, insistia.
O seu companheiro de viagem, assentiu com ar reprovador e comentou: “isto agora a gente já não sabe o que é bom. É tudo uma aldrabice, pagamos um dinheirão e somos mal servidos a toda a hora…”
Na acesa liça das palavras que saíam num turbilhão de diversas contestações e a que mais alguns passageiros davam as suas achegas, uma voz de uma senhora se ergueu e acrescentou: “…quando o meu marido foi para a tropa na Índia, passados uns meses fui ter com ele. Os mortos lá eram todos cromados e a gente que andava na rua às vezes até via eles prepararem aquelas coisas para deitarem os corpos em cima e pegar-lhes fogo. Agora quando querem cromar os mortos atiram-nos para um túnel e sai de lá as cinzas que as funerárias cobram fortunas à família…”
Retorquiu um dos interlocutores iniciais: “…ó vizinha, a gente do que está a falar é da cromagem dos para-choques não é da cromagem dos mortos…”, sem que retificasse a polissemia lexical.
Volta a senhora: “…pois é, mas seja com os mortos ou com os para-choques é como você disse, a cromagem já não se faz como dantes…”.
Eu também concordo!!!
Fim da viagem na carreira 608.
Fotografia de capa por mlpeixoto

Álvaro Oliveira

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