Em março, entregámos a chave da casa que servia de acolhimento para os voluntários da Rato - ADCC no âmbito do Serviço Voluntário Europeu - SVE. Esta sigla teve uma importância enorme na vida da Rato - ADCC, assim como de muitas outras organizações. O SVE foi e é traduzido numa dinâmica tão diversa em muitas organizações não só em Portugal mas em todo o Mundo.
O acolhimento de jovens de outros pontos do Mundo que vêm para realizar um projeto de voluntariado cria quase automaticamente uma imagem romântica e a minha associação tentou materializar durante 10 anos, quase sem interrupções. Estes 10 anos foram intensos e preenchidos com bons e maus momentos e esta contabilidade de momentos é muito difícil de fazer.
Olhando para estes 10 anos, assistimos a uma mudança nos voluntários e na organização - a interpretação da palavra “voluntário” tem sofrido gradualmente uma transformação: o SVE deixou de ser uma oportunidade de voluntariado para ser mais uma oportunidade. O SVE passou a ser visto como um ato de individualismo - o foco do projeto está no voluntário e naquilo que ele recebe.
Se é verdade que o voluntariado valoriza o voluntário, é importante referir que a motivação inicial do voluntariado assenta no objeto e na ação e não no sujeito. Ora o que aconteceu ao SVE foi uma certa perversão do conceito - na sua promoção e articulação, foi esquecida a razão fundamental pela qual se fazem projetos de voluntariado, mesmo quando estes têm uma dimensão internacional. Acho que também há uma mudança geracional - as motivações dos voluntários centram-se neles mesmos e o SVE é, muitas vezes, uma oportunidade para fugir: fugir do país, do desemprego, da família, do amor ou do desamor…
Se os voluntários têm direitos, as organizações que acolhem voluntários também os têm… e a verdade é que deixou de haver esse equilíbrio e deixou de haver essa confiança. Esta falta de equilíbrio e confiança deixam marcas nas organizações - uma tralha pesada em forma de problemas emocionais, organizacionais, financeiros… deixámos de ter paciência e começámos a pensar que haviam coisas mais importantes no nosso trabalho. Não foram só eles que mudaram - fomos nós também.
De facto, os voluntários SVE deixam muita tralha - sapatos, roupa, roupa interior, detergentes, produtos de higiene pessoal, medicamentos, preservativos, malas, mobiliário, eletrodomésticos, plantas… houve um voluntário que deixou em Portugal uma tartaruga (viva…), depois de ter voltado para o seu país.
Mas o elemento mais emblemático de toda a “tralha” dos voluntários SVE foi um cão de peluche gigante - prémio de uma rifa - que pertencia à Michaela, uma voluntária da República Checa. Aquele cão fez parte da mobília porque nunca tivemos a coragem de o mandar fora. Era uma memória da pessoa que esteve…
Mas a tralha pesa e ocupa espaço principalmente quando aquelas pessoas seguem em frente - para elas, em grande medida, deixam o peso para quem fica e seguem em frente muitas vezes sem a noção da obrigação e da responsabilidade do trabalho que fica. Aquele projeto pertence ao passado - um exemplo desta atitude, é que pedimos aos voluntários para escrever um relato final sobre o regresso no blogue da associação mas o que acontece é que a grande maioria deles não o faz. E eu percebo porque não o fazem - pertence ao passado. E o passado é tralha que se deita fora.
Nós ficámos com o “cão” da Michaela porque o passado também é memória e aprendizagem. E em nome de todas as coisas, boas e más, não podíamos deitar fora o “cão” da Michaela. Para o bem e para o mal, aquelas pessoas não são fantasmas - fizeram um percurso nesta associação. Mas são passado.
Mais do que nostalgia, sinto tristeza - é o fim de uma era. Tem de ser o fim de uma era. E se escrevo com tristeza, tenho que contabilizar a alegria dos feitos produzidos por estes “SVE”. E nestas contas, tenho que destacar a minha atual colega de trabalho Justyna - a primeira voluntária “SVE” - que não tratou a Rato - ADCC como um trapo velho. A diferença que a distingue é que ela ficou, lutou, sacrificou-se, perdeu, ganhou, chorou, sorriu e sabe que, muito provavelmente, vai voltar a chorar… mas fica. Este trabalho em Portugal é a merda que é… mas ela ficou. Ela é presente, e pelo seu passado na Rato - ADCC, ela é futuro… dziekuje
P.S.: O “cão” da Michaela foi finalmente oferecido. Pequenos gestos têm simbolismo… a vida tem de continuar.
Fotografia de capa por Dave Bezaire & Susi Havens-Bezaire